quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Nos limites da 'Chimérica'

Há poucos anos, um grupo minoritário de observadores notou que, em sua grande tela, a história desenhava uma relação peculiar entre a China e os Estados Unidos. O historiador Niall Ferguson, por exemplo, cunhou a expressão “Chimérica” para designar a natureza das relações comerciais, produtivas e financeiras que se desenvolviam entre a China e os Estados Unidos.

Digo “parcialmente” porque Ferguson tratou logo de esclarecer em vários artigos e livros que Chimérica ia além de um neologismo inteligente. Ele falava da quimera, monstro híbrido, parte leão, parte bode e parte serpente. “A Chimérica consiste fundamentalmente na combinação entre o desenvolvimento chinês, comandado pelas exportações, e o superconsumismo americano(...) Por certo tempo, a Chimérica não parecia um monstro, mas um casamento concertado no paraíso. O comércio global ‘explodiu’ e o preço dos ativos foi às alturas.”

Escrevi muitas vezes sobre o tema em CartaCapital, mas vou aborrecer o leitor com algumas repetições: a “monstruosidade” Chimérica, acusada por Ferguson, é tão somente a culminação de um longo processo de transformações da economia global no pós-guerra. É a exasperação das formas de articulação e do modo de crescimento da economia global na segunda metade do século XX.

O aturdido historiador imagina monstruosa a expansão mundial do capitalismo sob a hegemonia americana. Ela mudou a divisão internacional do trabalho e o esquema centro-periferia proposto pela hegemonia inglesa. Na Pax Britannica prevalecia a divisão clássica entre um “centro” industrializado e uma periferia produtora de matérias-primas. Já a economia continental norte-americana, desde o século XIX, é simultaneamente grande produtora de manufaturas, matérias-primas e alimentos. A sua hegemonia não se exerceu – nem se exerce – mediante o comércio, mas pela expansão da grande empresa.

No segundo pós-guerra, é a expansão da grande empresa que promove a ampliação dos fluxos comerciais entre os países. Na verdade, a primazia cabe às relações de comércio inter e intra firmas. Esse movimento primeiro envolve a Europa e a América Latina. Avança, mais tarde, para o Pacífico. Ao chegar à Ásia, altera profundamente a divisão internacional do trabalho: a região se torna produtora competitiva de manufaturas e importadora de matérias-primas e alimentos.

A partir das reformas empreendidas no final dos anos 1970, a China torna-se formidável produtora e processadora de peças e componentes, inunda os mercados de bens de consumo e equipamentos baratos e inicia uma escalada de graduação tecnológica. Conforma-se na Ásia uma mancha manufatureira, grande importadora de matérias-primas, que pulsa em torno da China. A partir daí, o mundo presencia o nascimento da Chimérica, um cataclismo na divisão internacional do trabalho.

Mas a história da economia mundial, desde meados dos anos 40, não pode ser contada sem a compreensão das peripécias do dólar em seu papel de moeda de faturamento nas transações internacionais e de ativo de reserva universal. No imediato pós-guerra, sob a égide de Bretton Woods, o poder do dólar conversível sustentou três processos simultâneos: 1. O déficit na conta de capitais, produto da expansão da grande empresa americana, garantiu o abastecimento da liquidez requerida para o crescimento do comércio mundial. 2. Daí, a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do Japão. 3. A industrialização de muitos países da periferia, impulsionada pelo investimento produtivo direto em conjugação com políticas de desenvolvimento nacional.

Os desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano levaram à breca o sistema de conversibilidade e taxas fixas de Bretton Woods, ao impor a desvinculação do dólar em relação ao ouro em 1971 e a introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973. A continuada desvalorização do dólar nos anos 70 colocou em apuros a economia mundial.

A regeneração do papel do dólar como standard universal foi efetivada mediante uma elevação sem precedentes das taxas de juro, em 1979, nos EUA. O fortalecimento do dólar, como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A força do dólar estimulou a redistribuição da capacidade produtiva na economia mundial – sobretudo na indústria manufatureira – e ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como o avanço da chamada “globalização financeira”.
Na condição de gestor da moeda reserva, os EUA gozaram do privilégio de atrair recursos para os seus mercados financeiros e de manter taxas de juro moderadas. Essa combinação de virtudes propiciou a emergência de dois fenômenos correlacionados: 1. A expansão do gasto das famílias amparado no crédito abundante e na inflação de ativos. 2. A acumulação de reservas nos países asiáticos, como contrapartida da ampliação dos déficits em conta corrente dos EUA. O gasto americano movido a crédito determina a “poupança” dos chineses, que, por sua vez, fornecem o funding para os déficits gerados nos Estados Unidos, tanto o público quanto o privado.

A Chimérica concedeu aos Estados Unidos a liberdade para a adoção de políticas monetárias e fiscais generosas, fontes das taxas elevadas de crescimento. A inflação de ativos propiciou as delícias do efeito-riqueza para fruição das famílias viciadas no endividamento e no hiperconsumo. A cada ciclo de expansão elevava-se o déficit em conta corrente e, assim, engordavam as reservas chinesas. (A farra culminou na crise atual.)

Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de desequilíbrios mediante o “re-alinhamento” entre as moedas é, sim, quimérico. A dita correção, dizem alguns, passa necessariamente por uma “redistribuição” de déficits e superávits entre as regiões envolvidas. O realinhamento entre o dólar e o yuan, segundo os otimistas, promoveria a ativação das fontes de crescimento domésticas na China e, consequentemente, a moderação da estratégia exportadora chinesa, compensada por um reequilíbrio da conta corrente americana.

Mas os advogados da valorização do yuan (e, consequentemente, da desvalorização do dólar) ignoram o choque negativo de oferta desferido sobre os custos manufatureiros, por conta da mudança de preços relativos. Para recupe-rar a competitividade e o emprego dos americanos, diante da baixa probabilidade de uma redução dos salários reais, a desvalorização do dólar em relação ao yuan terá de ser suficientemente drástica para “ajustar” os custos salariais americanos aos chineses. A Chimérica parece ter chegado a seus limites, assim como a fórmula americana do pós-guerra. O yuan subvalorizado é a outra face da supremacia do dólar.



Luiz Gonzaga Belluzzo

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