sábado, 7 de março de 2009

A fraude da “Paz e Democracia” em El Salvador

Danny Burridge

Em muitos aspectos, El Salvador é um símbolo. Há uma brincadeira que diz que, como El Salvador (O Salvador) foi enviado por Deus para julgar o mundo, estamos todos em sérios problemas; e é verdade. Contudo, a menos de duas semanas de um processo eleitoral histórico, em 15 de março de 2009, El Salvador tem a oportunidade de converter-se em um novo tipo de símbolo.

El Salvador é um exemplo clássico dos resultados da intervenção sistemática dos EUA no contexto da “guerra de baixa intensidade” da Guerra Fria. Os EUA apoiaram nesse país um aparato de esquadrões da morte (hoje convertidos no partido governante, a Aliança Republicana Nacional – ARENA), e um Estado militarizado que, em conjunto, foram responsáveis por 85% das violações de direitos humanos durante os 12 anos da Guerra Civil (1980-1992) que deixou 79 mil mortos. Mas, muitas vezes, até aí chega a análise da intervenção dos EUA em El Salvador na década de 1980. De fato, uma intervenção estadunidense sistemática no tecido sócio-econômico facilitou a coesão de uma “Nova Direita”, liderada pelo partido ARENA e o reservatório de pensamento FUSADES, que estabeleceu a hegemonia do setor privado, e inseriu El Salvador nos circuitos mundiais do comércio e das finanças.

A intervenção estadunidense prosseguiu, através dos Acordos de Paz e até a atualidade, sob o pretexto da “promoção da democracia”, que se manifesta em três princípios reitores: as políticas de ajuste estrutural neoliberal (a privatização, a liberação do comércio, a desregulação dos investimentos, os cortes de gasto social etc.), a propaganda a favor da atual ordem sócio-econômica, e campanhas de terror contra as alternativas que podem ameaçar a ordem existente. Depois de 20 anos de governos da ARENA, nenhum país da América Latina (salvo Colômbia) chegou a refletir melhor esses princípios.

Para os conservadores, El Salvador é visto como um exemplo brilhante da paz, da democracia e do desenvolvimento; mas uma “paz” combinada com os traumas da guerra não resolvidos que tem devastado o tecido social salvadorenho. O governo afirma que a pobreza está em 38%, mas estimativas realistas que levam em conta as graves disparidades entre o custo de vida (ao redor de 350 dólares por mês para uma família urbana) e o salário mínimo (ao redor de 195 dólares ao mês) localizam a pobreza entre 60 e 70%. Esse fato é causa de um êxodo massivo de migrantes salvadorenhos indocumentados aos EUA (500 a 700 pessoas saem diariamente).

As remessas que enviam a suas famílias previnem o colapso da economia salvadorenha (17% do PIB). Os conflitos econômicos e a desintegração da família se somam para fazer de El Salvador o segundo país mais violento do mundo (atrás somente do Iraque), com 68 homicídios a cada 100 mil pessoas. As autoridades públicas culpam as quadrilhas de quase todos os atos de violência, mas um grande número de homicídios é cometido por esquadrões da morte. Contudo (talvez convenientemente), o Promotor-Geral só pôde resolver 4% dos homicídios cometidos em El Salvador em 2007. Basta acrescentar os 1,2 bilhões de dólares roubados das arcas públicas e outros 25 milhões de dólares em evasão de impostos em mais de 20 anos de governos da ARENA, para evocar uma imagem de “Estado falido”.

Apesar da brutal realidade da “paz e da democracia” em El Salvador, a ARENA vende uma imagem diferente do país, tanto ao povo salvadorenho como ao resto do mundo. O atual presidente Tony Saca tem qualificado sua administração como o “governo com sentido humano”, destacando seu investimento social; contudo, entre setembro de 2006 e fevereiro de 2008, 104 mil salvadorenhos ingressaram na categoria da pobreza. Como respaldo a suas declarações, Saca recebeu o Freedom Award 2007 do International Republican Institute e o Camino a la Paz 2008 do “Observador Permanente de la Santa Sede” ante as Nações Unidas. A presidência de Saca, em primeiro lugar, se deve em grande parte à intervenção dos EUA nas eleições presidenciais salvadorenhas de 2004. Saca devolveu o favor mediante o envio de tropas salvadorenhas ao Iraque. Enquanto isso, os meios de comunicação massivos satanizam a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) e os movimentos sociais independentes, enquanto que ARENA utiliza a recente Lei de Luta contra o Terrorismo para reprimir as forças da oposição e o protesto social.

Esse modelo não havia sido seriamente ameaçado, até o atual ciclo eleitoral de 2009, no qual todos os postos de eleição popular estão em jogo. Mauricio Funes, o candidato presidencial do exército guerrilheiro transformado em partido de oposição – a FMNL –, está adiante nas pesquisas independentes. Funes, um ex-jornalista de grande popularidade, promete instituições que funcionem, a reativação do setor agrícola, o aumento do gasto social e uma política exterior independente. Ele tem à frente o fraco candidato presidencial da ARENA, Rodrigo Ávila, ex-chefe da Polícia Nacional Civil, em cujo mandato se registrou um alarmante aumento da violência.

De fato, os salvadorenhos se encontram diante de uma oportunidade singular para marcar um novo rumo a seu país, e em um momento oportuno. O atual sistema mundial entrou em uma crise econômica com uma polarização social sem precedentes. Os povos da América Latina despertam ante esta calamidade e tem elegido governos alternativos, que estão contra-atacando a hegemonia estrutural promovida pelo neoliberalismo estadunidense, com processos autônomos de desenvolvimento, democratização e integração regional. Um triunfo de Funes poderia desatar um processo similar de base em El Salvador, no qual estas novas forças regionais poderiam proporcionar valiosos conhecimentos, recursos e apoio político a um governo da FMLN.

Contudo, a ARENA se ocupou, em 15 anos, de construir um sistema eleitoral muito politizado e estruturalmente enviesado, que poderia assegurar sua própria vitória, apesar da vontade popular contrária. Em primeiro lugar, não existe a “votação distrital”, nem têm direito ao voto os mais de 2 milhões de salvadorenhos que vivem no exterior. Em segundo lugar, o registro eleitoral se baseia no censo de 1992, e não no censo de 2007. Em terceiro lugar, a ARENA controla a emissão dos documentos nacionais de identidade (DUI). Em conjunto, esses fatos dão ao partido a possibilidade de recrutar estrangeiros para votar legalmente nas eleições, como se fossem cidadãos salvadorenhos. Isso se constatou nas eleições municipais de 18 de janeiro de 2009, no município de San Isidro, Cabañas, quando um certo número de estrangeiros (principalmente hondurenhos e nicaragüenses) se apresentaram para votar, fazendo com que os nativos da zona encerrassem o processo de votação. Por último, não há nenhuma lei que exija que os partidos revelem a fonte de seus fundos de campanha, o que facilita campanhas extremamente sujas.

A ARENA tem se concentrado em fazer doações em comunidades pobres estratégicas, com promessas utópicas que contradizem suas próprias prioridades históricas, e que apresentam o FMLN como um partido violento entregue ao terrorismo e ao comunismo. Funcionários da ARENA tem acusado falsamente a FMLN de ter vínculos com grupos armados ilegais em EL Salvador, com as FARC, com Hugo Chávez e com quadrilhas nacionais salvadorenhas. Além disso, tem sentenciado que se El Salvador for governado pela FMLN, a liberdade será restringida as relações com os EUA serão destruídas. A rede de apoio transnacional à ARENA, especialmente a ONG, com sede na Venezuela, Força Solidária, tem sido crucial para reforçar essas afirmações. O diretor venezuelano da Força Solidária, Peña Esclusa, inclusive, tem conversado com os trabalhadores de empresas que operam em El Salvador, advertindo que uma vitória da FMLN colocaria em perigo seus empregos. Empregados públicos vem denunciando que lhes estão obrigando a votar no ARENA.

Em sua campanha não-oficial, ativistas da ARENA têm provocado enfrentamentos nas ruas com ativistas da FLMN, com o fim de justificar as acusações da FMLN perpetrar violência. Nos últimos anos, tem se produzido dezenas de assassinatos por motivos políticos contra membros de organizações de oposição, inclusive religiosos, ativistas e funcionários da FMLN. Recentemente, em 28 de janeiro, Edgar Tobar, um ex-coronel do exército e membro do movimento “Amigos de Mauricio” (Funes), foi assassinado durante a noite em sua casa em Colón, La Libertad.

Em suma, as eleições de 2009 bem poderiam fazer de El Salvador um poderoso baluarte da direita, apesar das condições favoráveis à esquerda. Contudo, seguramente, cedo ou tarde (talvez na mesma noite das eleições, por exemplo, se os resultados oficiais não refletirem a vontade popular), uma continuação do governo da ARENA provocará uma crise aguda e orgânica de legitimidade, na qual os salvadorenhos já não aceitarão a pobreza e a violência como seu pão de cada dia, e poderiam tomar as ruas.

Em consequência, o PNUD, EUA e FUSADES estão exigindo que a ARENA melhore a atenção aos problemas que atualmente colocam em perigo o clima de negócios e a estabilidade social. Sob essa mesma lógica, um governo da FMLN que faça melhoras na luta contra a corrupção, a violência e a pobreza, poderia ser visto como mais beneficioso que um governo da ARENA para a estabilização da atual ordem social.

Obviamente, Funes poderia iniciar um processo de radical questionamento à ordem social injusta. Mas um governo de Funes enfrentará enormes obstáculos, como os meios massivos de difusão e o governo municipal de San Salvador, sendo as duas principais armas da ARENA para demonizar e desestabilizá-lo. Também há incerteza acerca de quem realmente governaria no caso de uma presidência de Funes: será ele, ou os numerosos membros da liderança da linha dura ortodoxa da FMLN, com os quais Funes ficaria em dívida? E mais: o FMLN realmente se colocará a serviço da maioria marginalizada, fomentando o empoderamento dos movimentos sociais autônomos, ou buscará o poder e a riqueza, de uma maneira similar à ARENA, como alguns simpatizantes de base da FMLN temem?

Quem chegar ao poder enfrentará os efeitos da crise econômica mundial. Agora mesmo, as remessas enviadas a El Salvador por familiares nos EUA estão diminuindo; o desemprego tem aumentado e o governo está quase na falência.

Se as eleições de 2009 em El Salvador forem realmente livres, praticamente serão como um referendo sobre esse sistema injusto; ainda que há muitos indícios para considerar que não serão livres.

Danny Burridge trabalha em El Salvador como Coordenador do Campo para o Movimento Missionário Voluntário (VMM) e é consultor para a Fundação SHARE.


fonte: www.brasildefato.com.br

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